

Silvana Lima.
Tenho visto ultimamente uma onda social pelo desapego. Já li vários artigos, ouvi a recomendação de algumas pessoas e já até olhei sites que até ensinam a pessoa a aprender a jogar coisas fora para cada vez mais ficarem com menos coisas. Acho a iniciativa bonita, até me comovo com as matérias, faço pequenos ensaios de vasculhar a casa para encontrar coisinhas que possam ser passadas para outras pessoas ou mesmo que possam ir pro lixo. Mas… confesso que tenho certa dificuldade e que isso, o desapego, ainda não me é confortável. Dói.
Então, vi diante de mim duas alternativas: a primeira seria encarar a dor e ir ao encontro do desapego me desvencilhando aqui e ali de coisinhas que guardei por uma vida; e, a segunda: simplesmente assumir que sou sim, apegada, não ter vergonha ou culpa de estar indo na contramão da corrente que se instalou e pagar o ônus que isso me acarretaria.
Optei pela segunda alternativa.
Sou apegada sim, prazer! Gosto das coisas que tenho porque gosto de guardar coisas que tem histórias.
Meus pequenos objetos não são de luxo. Não valem uma fortuna. Meus pequenos objetos são coisinhas carregadas de afeto pelos quais tenho muito carinho e apreço. Quando os olho, vejo neles a identidade das pessoas que me ofertaram, num dado momento da minha vida, e lembro delas e lembro das situações que as envolveram, e lembro assim da minha vida passando. Essas coisinhas (pedrinhas, bonequinhas, livros, quadros, bibelôs, pedras, recadinhos) não falam, mas me dizem tanto!
Tenho em casa ferro de passar (a carvão) que me conta como minha avó passava as tardes na roça, uma penca de filhos brincando, um bebê pendurado em seu peito, negros cabelos imensos da minha avó.
Tenho em casa a eletrola cansada, que pus no canto da sala, pés palitos, megafone, agulha. Ela olha os vinis a postos, imperiosa, como se fosse mãe deles, sosseguem aí, meninos, já cantaram bastante pela vida. E eles, os vinis, obedecem. E eles assim, arrumados em fileiras, ainda que mudos, me falam tanto! Mas as pessoas me perguntam para que tenho vinis se posso ter mil músicas num pen drive. Dizem pra eu doar, vender, desapegar.
E penso.
O pen drive não me faz ouvir cada música como se uma delas fosse acabar a qualquer momento. O vinil me faz. Porque são apenas doze. E me faz levantar de onde estou e cumprir o delicioso ritual de virá-lo para então ouvir de novo mais doze músicas. E isso gera em mim um agrado, uma amenidade, uma delicadeza que não teria nem se ouvisse as mil músicas do pen drive.
Como desapegar deles?
Tenho um gravador de vozes que outrora era a novidade mais fantástica deste mundo . Ele me faz lembrar de uma das épocas mais felizes da minha infância quando uma amiga chegava do Rio de Janeiro para passar as férias numa casa do lado da minha, ali em São Cristóvão, trazendo essa pequena engenhoca. Era Flávia o nome dela. E o amor que sinto por aquelas tardes gravando músicas, conversas e risadaria, o amor que sinto pela Flávia, pela minha felicidade de criança, por aquela pequena casa na antiga rua Austrália, nossa, este amor está todo no pequeno objeto vermelho que tenho na minha casa.
Como desapegar dele?
Tenho um aquecedor portátil, presente do filho ainda quase menino que sabia como a mãe era apaixonada pela história das coisas; telefones de modelos diferentes, que documentaram conversas as mais diversas. Declarações de amor, quantos prantos de mães saudosas? Quantas conversas confidenciais? Homens tristes falaram neles. Namoradas desesperadas, madames dando ordens, chefes de empresas em encontros furtivos, domésticas, meninos e meninas…
Como desapegar deles?
Ila, a amiga querida, trouxe-me livrinhos de histórias, pequenas raridades da década de 60. Trouxe-me também dois volumes de Caldas Aulete, meu deleite. As páginas quase despencam das minhas mãos, o que faz com que amigas e amigos novamente me questionam que estão velhos demais… que as histórias são caretas, que não se escreve mais desta forma… e eu fico ali, com eles nas mãos para, no fim, recolocá-los todos lindamente na minha estante. Carregam não só as histórias que trazem em suas páginas, mas as histórias deles próprios, simplesmente por existirem e já terem sidos manuseados e lidos por tanta gente.
Como desapegar deles?
Uma lamparina, mas para que uma lamparina? Poucos vão entender sobre essa lamparina gasta que iluminou o parto da minha avó. Que acendeu para minhas tias lerem pequenos bilhetinhos que os rapazes colocavam na cerca da casa, essa lamparina de chama turva, que deixa as narinas pretas, para que tê-la em casa? Para me iluminar, respondo. Como desapegar deles? – respondo.
Os pés da máquina Singer, primeiro modelo, seguram minha mesa, onde escrevo agora. Eles me contam histórias e me inspiram. A parte de cima dela, pequeno enfeite que agora é ornado com flores, fica ali conversando comigo. Sempre conversamos. Nossa costura é o afeto que nos liga, sem medidas. Sou filha de mão costureira, o barulho da máquina me é familiar e me leva a histórias pessoais apaixonantes. Sinto-me segura com ela perto de mim, parece que a pequena distância entre nós (ela em cima de um móvel e eu andando pela casa), essa pequena distância é carregada com toda minha história . Ela me diz quem fui, quem sou e me ajuda a caminhar. Não, não posso. Não sei. Não consigo desapegar.
Sim, sou apegada a coisas, a coisinhas. Julguem-me! Estou pronta!